Um sol crestante sobe ribeira acima e eu vejo-me descendo, em calções, presos por uns suspensórios minúsculos, carreiro abaixo em direcção à ribeira fremente de água. Um calor de quebrar seixos invade tudo, mesmo a sombra das oliveiras. Lá em baixo a ribeira viaja tranquila. Melros negros como azeviche, de bico amarelo, vão catando a negra e formosa amora que cresce desenvolta junto ao açude. A todo o correr da ribeira desce com ela o verde dos milharais a perder de vista...um sortido de casas em xisto, espalhadas anarquicamente de ambos os lados do caminho, e cobertas de enormes lousas, decoram a paisagem... a ribeira é ali o centro de tudo apesar de caminhar prazenteira, lá ao fundo, alheia a todos os sentimentos. A aldeia da minha infância ganha vida quando ouço Smetana e o seu poema sinfónico “Moldau”.
«O país de Sócrates e de Cavaco, de Maria de Lurdes Rodrigues e de mais uns quantos e umas quantas iguais ou piores, está a saque, vai a pique para o abismo. Deram-nos Totolotos e Euromilhões, Futebóis e Estádios de primeira água e, ultimamente, "magalhães" a rodos. Em lugar de despertarem em nós valores, afectos, ternura, carinho, inteligência sapiente, sabedoria, práticas solidárias e sororais / fraternas. Fizeram das escolas lugares de preguiça, de facilidade, de irresponsabilidade, de copianço e de plágio na internet; ensinaram a roubar as ideias dos outros, a criatividade dos outros, em vez de despertarem criadoras, criadores em todas e cada uma das crianças, em todos e cada um dos jovens, elas e eles, e agora é o que se vê. No meio de toda esta correria para o abismo que este Governo de mentira e de incompetência demencialmente pilota, não há quem pare, desligue o magalhães-José-Sócrates, que lhe diga ao ouvido, e ao ouvido do Cavaco seu adjunto que se vão embora, o Cavaco, para a sua casa de praia em Boliqueime, e o Sócrates para uma universidade perita em Humanidades?!... »
...ler mais Sento-me no muro baixo daquilo que parece ser um tanque com uma entrada virada a sul. Lá dentro alguns tapetes e, sentado num deles, um homem ainda novo, encostado ao baixo muro, vai falando abstraidamente para o interior do seu telemóvel. Deixou do lado de fora as sandálias, em sinal de respeito. Porque ali dentro da “mesquita” só se entra com humildade, isto é, descalço. Do outro lado do muro um jovem acaba de vestir uma camisa remendada. Diante dele a cabeça de uma máquina de costura, do tipo daquelas que encontrávamos na sala das nossas avós há alguns anos atrás. É um jovem alto, magro de linhas, de olhar vivo e embaraçado. Dos lábios finos desprende-se continuamente um sorriso tímido. Diz-nos que é do interior do país, perto da fronteira com o Gana. Confessa-me que não passou pela escola oficial mas que frequentou a escola corânica, a Madrassa, onde aprendeu o árabe. Explanamos o Evangelho, la bonne nouvelle, com doçura. Por vezes sinto que se perde no meu sotaque do francês. Umas vezes dá ares de compreender outras vezes mostra-se confuso. Quer ir para o paraíso, evidentemente, como todos os muçulmanos, e eu tento fazê-lo compreender que isso não depende das obras mas da graça de Deus.
Inesperadamente, inicia-se uma chuva sem mercê. Resistimos-lhe aproximando-nos o mais possível do tronco da mangueira. Junta-se a nós o chefe da oficina de automóveis onde nos encontramos. Chama-se Bari. É um homem magríssimo, baixo, de barba rala e de aspecto feliz. Veste uma espécie de bata azul, muito coçada, em cujos bolsos mantém as mãos, retirando-as a espaços para acompanhar o diálogo com os gestos. Veio da Guiné Conacry faz muito tempo, tanto que nem ele já se lembra bem. Introduz-se sorrateiramente no nosso diálogo e começa a falar de profetas e dos livros. Diz crer no Livro e ser ele um livro de Deus. À minha pergunta sobre o porquê da necessidade de Deus enviar outro profeta com um outro livro começa a divagar. Começa a falar das obras e da sua importância no processo da salvação. Ouço-o com atenção e aprendo. Em cada contacto que faço aprendo sempre algo mais. A chuva impiedosa persiste. Mais poderosa do que nós obriga-nos a passar para debaixo do alpendre duma casa em construção. Sentamos-nos nuns tijolos que ali se encontram, bem encostados à parede. O meu companheiro começa a dormitar enquanto continuamos o diálogo. De repente Bari vira-se para o jovem com o qual iniciámos a conversa e fala-lhe das qualidades de Jesus: Este profeta nunca pecou, fez grandes milagres, ressuscitou mortos, foi pregado numa cruz e depois ressuscitou. Voltamos aos Livros na próxima semana, incha Allah!
Despe-se a tarde da chuva intensa caída toda a manhã e eu sento-me num improvisado banco comprido, debaixo dum improvisado hangar, postado ao lado da rua, enquanto me lavam o carro. Por trás de mim um ritmo africano estridente ribomba-me aos ouvidos enquanto eu penetro na minha leitura. Faz algum tempo que comecei a ler este livro mas tenho dificuldade em chegar ao fim... O empregado da lavagem de carros quase se deita dentro do meu, talvez em busca da moeda perdida. Aparece depois com um velho aspirador e inicia a aspiração lenta e calmamente. Na rua passa uma mulher ajoujada pelo peso da bacia repleta de garrafas cheias de sumo encarnado, o bissap. Por trás de uma velha mesa onde duas camadas de velhos papéis, alinhados simetricamente descansam, um rapaz vai marcando o ritmo da estridente música africana, com os nós dos dedos. Na outra extremidade da lavage de voitures um homem balança-se entre o telemóvel e o seu Mercedes que outro funcionário começa a lavar. Veste uma camisa verde clara muito bem cuidada sobre a qual se encavalitam uns enormes suspensórios que suportam as calças verdes. Tem um ar feliz do tipo daquele que tem as pessoas que estão bem na vida. Retiro o olhar da rua e do homem vestido de verde, impecavelmente vestido, tento abstrair-me da música ensurdecedora, e volto a deslizar os olhos para a minha leitura. Volto ao conde Bezukhov que parece estar no bom caminho para acreditar na existência de Deus e abandonar o impiedoso caminho do ateísmo.
Houve um inglês de origem humilde que, em 1878, declarou guerra contra duas poderosas frentes: a pressão da pobreza e o poder do pecado. Doze anos mais tarde, ele publicaria seu único livro: “In Darkest England -- and the Way Out” (Na Inglaterra mais escura -- e o caminho de saída). Trata-se de William Booth (1829-1912), o pastor metodista que fundou o Exército de Salvação. Quando alguém lhe perguntou quais seriam os maiores perigos doutrinários do século 20, ele respondeu de pronto: “Religião sem Espírito Santo, cristianismo sem Cristo, perdão sem arrependimento, salvação sem novo nascimento, política sem Deus e céu sem inferno”.
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